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Leitura hereditária

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Antes de reclamar que seu filho lê pouco, talvez seja o momento de se questionar se você mesmo é um leitor. Manter livros em casa e tratar a leitura como um prazer pode ajudar a estimular o hábito em família, de pai para filho
Um país se faz com homens e livros”, costumava dizer Mon teiro Lobato. Mas, no Brasil, meio século após a morte do criador da boneca Emília, os livros continuam faltando nesta equação. Aliás, livros e leitores. De acordo com a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo IBGE e o Instituto Pró-Livro em 311 municípios brasileiros no final de 2007, apenas 35% da população afirma gostar de ler em seu tempo livre. Destes, a grande maioria tem formação superior, estuda ou trabalha e vive na região Sul. A Bíblia e obras didáticas encabeçam a preferência dos leitores entrevistados.
Se em países desenvolvidos a média de leitura per capita é de sete livros ao longo do ano, no Brasil este número está em 4,7, mas somente se incluirmos as obras indicadas pela escola. Do contrário, a conta não fecha dois livros por ano. Porém, reforçar a importância da leitura no desenvolvimento humano é bater em uma tecla já desgastada. A grande questão é entender como uma pessoa se torna leitora, de que estímulos ela precisa para sentir prazer na companhia dos livros, sem que isso se torne uma obrigação – tarefa que, tudo indica, deve começar dentro de casa.
Para Luciane Hagemeyer, pro fessora de Língua Por tu guesa do Ensino Fundamental no Colégio Medianeira, leitores nascem primeiramente pelo exemplo. “A chance de pais leitores, ou que valorizam a leitura como prática social, formarem filhos leitores é muito maior”, garante Luciane, que em 2008 foi finalista do Prêmio Viva Leitura e hoje coordena a oficina Clube da Leitura, do colégio durante o período extracurricular.
Segundo ela, as crianças precisam aprender desde cedo a se reconhecer como leitoras, sendo orientadas a manter uma lista de interesses de leituras e identificar os gêneros e autores que preferem. “Estes estímulos podem fazer parte não só da proposta de uma boa escola, mas também devem ser cultivados em família”, opina. Esta também é a percepção da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil: enquanto 60% dos leitores en trevistados disseram que se ha bituaram a ver seus pais lendo, no caso dos não-leitores este número se inverte. 63% afirmaram nunca ou quase nunca te rem presenciado isso em casa.
Se o exemplo de pais para fi lhos é mesmo importante, a tradutora e doutora em Comunica ção Luciana Doneda está no caminho certo. Apaixonados por livros, ela e o marido têm uma biblioteca com cerca de 800 títulos, e já começaram a “inocular o vírus da leitura” – como se referia o bibliófilo José Mindlin – nos filhos Dora, de 4 anos, e Adria no, de apenas 1. “Desde bebês os dois se acostumaram a ter contato com obras infantis. No quarto deles, montei uma pequena biblioteca que hoje tem em torno de 150 volumes, mas na estante da sala eles também têm espaço na prateleira mais baixa, onde conseguem alcançar”, conta a mãe. Dora ainda não sabe ler, mas adora folhear as páginas, e isso inclui os livros dos adultos, que não têm ilustrações coloridas. “Ela finge que está lendo e vai inventando enredos. Dora é muito criativa, quando começa a fazer o seu ‘teatro’, misturando histórias da Branca de Neve com o Pinóquio. A família toda senta para ouvi-la contar”. Apesar do contato intenso com livros em casa, Luciana matriculou Dora em uma escola Waldorf. Na explicação da tradutora, esta linha pedagógica privilegia a cultura oral da contação de histórias, da música e do teatro, colocando a criança em contato com pensamentos e ideias mais abstratas do que concretas. “Não há um incentivo ao consumo e ao discurso dos personagens de desenhos animados, por exemplo, o que deixa a criança livre para criar seu próprio discurso”, diz.
Para Luciane Hagemeyer, é pre ciso oferecer não apenas os livros, mas estar disposto a ler pa ra as crianças, se possível todos os dias. “Existem duas formas de uma história entrar para a nossa vida: pelos olhos (lendo) e pelos ouvidos. Além de ler para a criança, é importante conversar com ela, procurando encontrar pontos em comum entre o que foi lido e já vivido. Desse modo, os livros podem se tornar um canal aberto de comunicação entre pais e fi lhos, alunos e educadores”, conclui.
Incentivo na escola
Nem todos têm o privilégio de conviver com livros em casa desde cedo. Rogério Pereira, editor do jornal de literatura Rascunho e hoje dono de um acervo com aproximadamente 12 mil obras, conta que seus pais, de origem simples e sem estudos, não tinham o hábito de ler. “Na minha casa o único livro que existia era a Bíblia. Eu só fui começar a me interessar por literatura na escola, com 15, 16 anos. Por conta disso, não li Monteiro Lobato e os clássicos infanto-juvenis, comecei direto com autores como Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, João Antônio”, lembra. Hoje, Pereira faz o trajeto de volta ao apresentar à sua filha Sofia, 3 anos, aqueles clássicos que não pôde ler na infância. Em sua opinião, os caminhos para a formação de leitores são diversos, mas geralmente passam pelo ambiente doméstico ou pela escola, embora o jornalista não acredite que a atual rotina escolar estimule a leitura e faça com que os jovens de fato se interessem por ela.
Luciane Hagemeyer também percebe que, de um modo geral, as escolas fazem pouco pelos leitores. “Na teoria, nenhum educador vai dizer que não valoriza a leitura. Mas a verdade é que a escola não ensina a manusear os livros, principalmente os literários. A natureza do texto literário é algo meio obscuro ao educador. Na maioria das vezes o que se faz é uma lista de perguntas após a leitura, para ver se a criança compreendeu bem o texto. Ou seja, ela só precisa reproduzi-lo, enquanto o ideal seria ensiná-la a pensar a partir do texto”, constata a professora. Para ela, muitos educadores não conhecem os livros, estão por fora dos lançamentos editorias, não vão à biblioteca e não leem obras infanto-juvenis. “Não se pode ensinar aquilo que não se conhece”, afirma.
Tempo e dinheiro
Segundo o jornalista e empresário Rogério Pereira, há dois argumentos recorrentes que costumam afastar as pessoas da leitura: a falta de tempo e de dinheiro para comprar livros.
“Isso é pura desculpa, porque um CD custa quase o mesmo que um livro e as pessoas continuam comprando. Há um mercado muito amplo, com espaço para todas as classes sociais terem acesso a bons livros, desde clássicos de bolso a títulos encontrados em sebos ou até em domínio público, com download gratuito na internet. Ou seja, quem quer ler tem como chegar ao livro”, assegura. Já o segundo empecilho tem a ver com organização e prioridade. “As pessoas que gostam de ler dão um jeitinho de encontrar tempo para isso, assim como quem gosta de assistir a novelas faz de tudo para estar sentado em frente à televisão naquele horário”, provoca Pereira, que já chegou a ler 15 livros em um único mês. Em sua visão, a leitura de livros é uma atividade que deveria fazer parte de um cardápio cultural variado, que pode incluir a novela, o cinema etc. “O problema é que o livro costuma ser excluído deste cardápio”, lamenta.

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Divulgação / Crianças em encontro do Bando da Leitura, que desde 2007 se reúne em Ponta Grossa, na casa de Lucélia ClarindoAmpliar imagem
Crianças em encontro do Bando da Leitura, que desde 2007 se reúne em Ponta Grossa, na casa de Lucélia Clarindo
Um bando no quintal
Quando a professora e pedagoga Lucélia Clarindo teve que se aposentar aos 48 anos, devido a complicações de saúde, seus alunos não lhe deram descanso. Poucos dias depois de deixar a escola onde lecionava, em Ponta Grossa, ela foi surpreendida por um grupo de crianças, que batia na porta de sua casa para pedir que lhes contasse histórias. Sensibilizada com o gesto, Lucélia, que há mais de 20 anos se dedica à literatura infantil, aceitou a proposta de formar um clube de leitura. “Tudo começou no dia 14 de março de 2007, Dia da Poesia. As crianças foram chegando e passamos a nos reunir no quintal da minha casa para ler e conversar sobre livros”. Assim, espontaneamente, surgiu o Bando da Leitura, encontro que acontece sempre às quartas-feiras à tarde na residência da professora aposentada, em Ponta Grossa, e propicia um ambiente prazeroso em torno da leitura literária. “Primeiro, as crianças ficam à vontade para escolhendo os livros que querem ler, depois estendemos folhas soltas coloridas com poesias no varal de roupas do quintal, fazemos contação de histórias, dramatizações, oficinas e às vezes recebemos a visita de escritores locais”, conta.
Em 2007, Lucélia inscreveu o projeto no concurso Ponto de Leitura Machado de Assis, do Ministério da Cultura, que acabou sendo aprovado e contemplado com um acervo de 650 obras. Em seguida, o Rotary International manifestou interesse em construir uma sede própria para o Bando, que deve ficar pronta em abril – Lucélia torce para que a data caia no Dia Nacional do Livro Infantil. Apesar de contar com tantos parceiros, ela não recebe nenhum incentivo financeiro e orgulha-se ao dizer que o projeto é voluntário, graças ao apoio de seu marido, ator e diretor de teatro, e dos três filhos.
Em família
Dentro da casa de Lucélia, a cultura oral e narrativa sempre esteve presente. “Passei toda a adolescência lendo, e minha mãe adorava narrar contos de fadas em volta do fogão à lenha. A gente tinha poucos livros, mas não tinha televisão. Eu gostava muito de ouvir novelas pela rádio e sempre escrevia cartas para os parentes”, lembra a educadora, que admite ter lido de tudo naquela época, sem critérios. Só depois, já na escola, é que começou a freqüentar a biblioteca pública da cidade e incluir Guimarães Rosa e Jorge Amado em sua bagagem literária. “Quando meu primeiro filho nasceu, já passei essa paixão para ele, que começou a ler aos 4 anos e meio”, lembra a mãe coruja.
Sala de aula
Apesar da presença constante de crianças que um dia foram suas alunas, Lucélia garante que o Bando da Leitura está longe de ser uma sala de aula. “Eu não ensino ninguém a ler, não faço correções quando elas estão lendo, não dou nota nem falta. Nos encontros do Bando, sou tão leitora quanto elas, também estou vivendo um processo de descoberta. Por isso eu digo que não quero ser chamada de professora, porque ali nós somos todos iguais”, ensina. Outra diferença básica entre seu trabalho e o ambiente escolar está na liberdade e autonomia para escolher suas leituras. De acordo com a educadora, a espontaneidade é mais estimulante do que a obrigação. “Sou contra a ideia de decidir o que uma criança deve ler. É ela quem deve escolher o que mais lhe interessa. Toda leitura vale a pena, e com o tempo a pessoa aprenderá a selecionar melhor os livros e autores, naturalmente”.
Hedeson Alves/ Gazeta do Povo / Luciana Doneda com os filhos Dora e Adriano: livros espalhados pela casa
Luciana Doneda com os filhos Dora e Adriano: livros espalhados pela casa
Publicado em 04/04/2010 | MARIANA SANCHEZ, ESPECIAL PARA A GAZETA DO POVO - MARIANAB@GAZETADOPOVO.COM.BR